sábado, 8 de novembro de 2008


Há cerca de 20 anos, foi mais ou menos assim:

Naquela rua antiga, a luz de uma manhã solarenga de Verão de S. Martinho realçava a lixeira e desordem que provinham das obras do edifício em construção. Contudo, a areia espalhada pelo passeio, as redes de aço enroladas na berma da estrada e os longos blocos de betão empilhados não iriam beliscar a aparição daquele indivíduo com o cabelo à Bucketheads e dos seus sapatos à Júlio Iglesias. Vinha lá de longe, a pé, o guardião Neno, em direcção ao Complexo Desportivo. Não vinha a cantar. Ainda não se lhe conhecia tamanho dom encantatório. Mas ostentava aquele sorriso um pouco parvo que, aqui sim, já lhe era característico.
Foi possível ver aquele miúdo abeirar-se do guardião Neno. Era visível na mão dele (miúdo) a caderneta dos cromos de futebol da época em curso, além da camisola do Liverpool que trazia vestido. Era a do Ian Rush, se bem que o miúdo, que não teria mais de 9 anos, não apresentava um bigode condizente com o do temível dianteiro galês. Ainda assim, aquele rapaz franzino escusou-se em bater inapelavelmente o guardião cabo-verdiano com um remate seco, rasteiro e colocado, mesmo sabendo que este se encontrava fora dos postes, logo, no local onde ele era francamente mau. Ao invés, o miúdo remataria da seguinte forma:


- “Ó Neno, importa-se de me autografar a minha caderneta?”


Desconhece-se se o cromo do Neno já figuraria naquela específica caderneta. Mas o valor sentimental daquela caderneta e daquele iminente autógrafo era inquestionável no processo de formação daquele específico miúdo. Reconhece-se facilmente a ampla densidade emocional daquela rúbrica, nem que fosse junto do cromo do Eskilsson ou do talentoso Jorge Plácido. E Neno, sempre melodiosamente, “defenderia” da seguinte forma:

- “Não dá. Não tenho caneta… Eu sou da Cidade Velha, de Cabo Verde, de Cabo Verde.”

Foi um balde igual ao das obras do edifício em construção e cheio de água fria. Para alguém de, no máximo, 9 anos de idade uma caneta representa invariavelmente as aulinhas na escola primária. Não era pois de esperar que o miúdo, devoto do Liverpool e do Ian Rush, decorasse a lapela da sua camisola dos “reds” com esse dito objecto. Desanimado e cabisbaixo, o miúdo “insistiu com novo cruzamento”:

- “Deixe lá Sr. Neno, da ilha de Santiago, de Cabo Verde, de Cabo Verde. Vou para casa jogar o Emilio Butragueño no meu Spectrum e não penso mais nisso.”

Inteligentemente respondeu, assim, aquele miúdo. Porque, sapientemente, aquele miúdo de talvez 8 anos de idade, devoto do Liverpool e do Ian Rush e sem um bigode condizente com o deste, sabia que iria dar lugar a um miúdo, não de 8 mas de quase 28, que continuaria devoto do Liverpool e do Ian Rush e talvez agora capaz de ostentar um bigode condizente com o deste. E na mão deste “novo” miúdo continua visível a caderneta dos cromos de futebol da época em curso, agora sem que aí figure o guardião Neno, quer na caderneta quer entre os postes, onde ele até era bom…

Posto isto, a presente rábula oferece dois pequenos esclarecimentos:
1- Aquele miúdo devoto do Liverpool e do Ian Rush, sem um bigode condizente com o deste, era eu.

2- Estou a coleccionar os cromos de futebol e já tenho repetidos. Aceito trocar, desde que não seja por autógrafos do ex-guardião Neno.

2 comentários:

Carolina Fontes disse...

Belo testamento... Confesso que não consegui ler até ao fim :P

Anónimo disse...

Sem bigode na altura, mas agora podes ter um bigodinho igual ao dele e na passagem de ano qd fores á festa spectrium tens que levar um bigodinho á Ian Rush!! Vai ter q ser!